Por Berna Almeida

crônicas -

O Silencio de Papai


Eu olhava papai e não conseguia entender seu silêncio, com os olhos fitos no teto do quarto.

Dias desses, estava a perambular pela casa, resmungando pelos cantos, me chamando, me seguindo o tempo inteiro, fazendo xixi pela casa, cuspindo onde estivesse…

De repente, não se importava mais se as janelas estavam abertas ou fechadas, perdeu o rumo dos espelhos para confabular com seu amigo ilusório.


Dava a impressão que ele não tinha mais forças ou necessidade de guerrear, afiar ferramentas, descer para assistir os espetáculos, nos ringues da vida.

Me tornei o general e ele o cabo:

– Abre a boca, engole, fecha a boca!

– Vamos tomar banho!

– Aí não, não mexa aqui, já te pedi isso mil vezes.

– O que é papai? O que é que o senhor quer, pelo amor de Deus?

– Vá dormir papai… Estou exausta!

Hoje entrei sorrateiramente em seu quarto, lhe disse baixinho:

– Papai, vamos tomar café?

Seu olhar sem brilho e distante, foi a resposta que obtive.

Não era papai…


O coloquei sentado, e fui aos poucos sentindo o que eu não queria sentir…

A distância de seu olhar para o meu… Não era ele, aliás, era ele – partindo…

Era ele me dizendo que a luz de uma estrela não brilha somente em um lugar…

Nunca havia passado um inverno interior tão rigoroso… Senti-me vulnerável, impotente, com medo do desconhecido, assustada com a estrada sem saída … Era papai de lá e eu de cá vivendo momentos sombrios, sentindo a alma gelada, sem forças para dar forças, e sentir seu olhar reluzente em minha direção. Não havia mais nada…

Foram os dias mais cruéis de minha vida, eu não conhecia quem comia, bebia, dormia na nossa casa. Minha vontade era largar tudo, e sair em busca de socorro.

Com quem contamos nos invernos de nossas vidas?

A minha dor e meu desespero eram tão intensos, que pude sentir a imensidão do medo de perder a minha razão de viver.

Descobri ali que éramos em três, eu meu pai e o intruso.

Quanto mais eu alimentava meu pai mais eu sentia o intruso fortalecido, e ao mesmo tempo eu não podia deixar meu pai com fome e sede.

Cheguei à conclusão que a minha saga eram com duas pessoas, que eu alimentava e cuidava cotidianamente, SOZINHA.

Quem pode com este cara que invade nossas casas, e acabam com nossas vidas desta forma?

Nem meu pranto de misericórdia trouxe luz aos olhos de papai.


Já não ouvia mais seus gemidos, o arrastar de seus chinelos, já não pedia mais para leva-lo para sua casa…

Ele sutilmente estava indo… Certo que ele deveria pensar:

– Toda vez que eu peço ela arruma uma desculpa.

A casa, papai, minha vida, nossas vidas, nós não éramos mais os mesmos.

Chamo os demais filhos? Se nunca vieram visitar…

Telefonemas?

Só da assistente social e confirmação de consultas.

Minha indignação perante a vida, a doença, os sonhos de papai, ficaram na perplexidade ao ver que diante de 8 filhos, somente um segurou as mãos dele no dia de sua partida.

Somente um cuidou durante 12 anos, de dia e de noite…

Papai partiu no início da primavera, e mesmo com seus olhos cerrados eu vi que daquele momento em diante, era eu quem tinha que ir me buscar onde me havia largado, para cuidar dele.



Autoria: Berna Almeida